O dúplex do marchand Jean Boghici
Cobertura em Copacabana reunia o melhor da arte
A reportagem a seguir foi publicada originalmente na edição de dezembro de 2011 da revista Casa Vogue. Por ocasião do incêndio que destruiu boa parte da cobertura de Jean Boghici na noite desta segunda-feira (veja aqui), recuperamos a matéria de nosso arquivo, com o intuito de mostrar como era o imóvel e a coleção de arte de valor incalculável que as chamas consumiram. Casa Vogue se solidariza com o marchand e sua esposa e saúda-os por nada de pior ter acontecido ao casal.
A cobertura dúplex do marchand Jean Boghici e de sua mulher Geneviève, em Copacabana, abriga um acervo admirável de grandes nomes da produção artística do século 20. Outra característica do apartamento desse casal, que adotou o Rio (ela é francesa, ele, romeno), é o mobiliário. Exceto por um banco e uma poltrona de Sergio Rodrigues e uma mesa de apoio de Alvar Aalto, todos os móveis levam o selo da manufatura de Joaquim Tenreiro (1906-1992), um português que, assim como os donos da casa, escolheu o Brasil para morar e, a partir de meados dos anos 1930, durante quase cinco décadas, criou o conceito do móvel brasileiro.
A área social do andar principal é dividida em duas salas. Na primeira, está o óleo Samba, 1925, de Di Cavalcanti. Ali também ficam uma tela de 1950 do pai da arte povera, o italiano Alberto Burri, e outra do pai da op art, Victor Vasarely, além de um Lucio Fontana amarelo, ambas dos anos 1960. Mas não só isso. Nesta ala do museu particular dos Boghici, encontram-se três telas dos anos 1920 de Vicente do Rêgo Monteiro: Retrato de Joaquim Monteiro, Cabeça de Mulher e O Carroceiro. Há também um Milton Dacosta, dos anos 1940, a escultura de mármore Tocadora de Banjo, 1925, de Victor Brecheret, e um ícone de Tenreiro: a cadeira Três Pernas, de 1947, um sanduíche de imbuia, roxinho, jacarandá, pau-marfim e cabreúva, exemplo da excelência e modernidade desse artista da madeira. Na segunda sala, mais Tenreiro. Sobre o piso de parquet em espinha-de-peixe, está um sofá de jacarandá de quatro lugares apenas dois exemplares foram produzidos pelo designer.
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Há também dois pares de poltronas, um composto pelo modelo Curva, de 1960, e o outro pela Leve, de 1950. Os dois troncos maciços que formam a mesa de centro, também de Tenreiro, servem de base para dois magníficos bronzes: O Casal, 1940, de Maria Martins; e O Beijo, 1900, de Auguste Rodin. A expressividade das paredes fica por conta de três telas de Antonio Dias, dos anos 1960, duas telas de Wesley Duke Lee, O Prêmio e O Rapto da Europa, ambas da década de 1960, e um tríptico do artista do Grupo Cobra, Corneille, No jardim das antenas atentas, 1966. Mas há ainda um guindaste do carioca Roberto Magalhães, dos anos 1960, e, coroando o espaço, no teto, um móbile de Alexander Calder, de 1948.
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Forrada com boiserie, a sala de jantar traz mais Tenreiro com a mesa de jantar com tampo de vidro pintado de verde, as cadeiras Estrutural, o bufê e o magnífico lustre de cristal. Nas paredes, Cidade Azul, de Antonio Bandeira, um nanquim do japonês Saïto e telas de Antonio Dias. A pintura russa dos anos 1960 se faz presente com obras de Sitnikov, Ilya Glazunov e Oscar Rabin e do maior pintor russo que adotou nosso país, Lasar Segall, representado pelo óleo O Leitor, de 1914. O epicentro do jardim de inverno é o conjunto formado pela mesa Oval (1960), com tampo de mármore e suas seis cadeiras de jacarandá e palhinha-da-índia. “Era da casa do Tenreiro, ele almoçou nela durante anos”, revela Geneviève. Na parede, uma tela da Nova Figuração francesa de Bernard Rancillac, Dîner des Collectionneurs de Têtes, 1966, traz vibração ao ambiente.
Em direção à ala íntima, surgem um Trepante e um Bicho de Lygia Clark. No quarto do casal, sobre a cama de jacarandá, preciosidades em pequeno formato: Namorados, 1948, de Milton Dacosta; o tríptico Natividade, 1949, de Antonio Bandeira; de Cícero Dias, Pim Pam Pum, 1928, e Condenação de Usineiros, 1930; e Gato no Rochedo, 1938, de Xu Beihong. Na parede ao lado, um Torres García, de 1931, Carteira de Identidade, 1967, de Gerchman; e O Sono, 1928, de Tarsila do Amaral. Mas é o retrato Menino, 1940, de Alberto Guignard, que mais emociona a ex-bailarina de balé moderno. Tudo nele é bonito, diz a anfitriã sobre essa obra do primeiro artista que seu companheiro, verdadeira lenda viva da arte brasileira, conheceu ao desembarcar no Rio, em 1949. Jean é vanguardista, diz ela sobre o marido, um dos criadores do mercado de arte no Brasil.